Por: Claudia Gelernter

"É de notar-se que, em todas as épocas da história, as grandes crises sociais foram seguidas de uma era de progresso". (Allan Kardec, 1868).

Antes de iniciarmos uma abordagem sobre a complexa e instigante questão da família, cabe-nos dizer que ela, mais que qualquer outra instituição, participa da ambiguidade inerente à condição humana, que nos faz simultaneamente bons e maus, dentro do atual estagio evolutivo no qual transitamos.

O psicologo Ken Wilber, famoso pensador e criador da Psicologia Integral, em seu livro Éden, Queda ou Ascenção, esforça-se por esboçar a curva da história humana, para embasar sua teoria de que viemos das feras, mas tendemos aos deuses. Wilber afirma que o futuro do gênero humano é a consciência de Deus. Porém, devido ao fato de estarmos acima dos animais e ainda a caminho do divino, somos ‘figuras trágicas’, pois estamos equilibrados entre dois extremos, sujeitos aos mais variados conflitos, justamente por não sermos mais os ‘completos ignorantes’, e, por outro lado, por não conseguirmos atingir, no momento, a tão almejada sabedoria, que nos colocaria em situação de paz, mesmo em meio às tormentas. (WILBER, 2010).

Vivemos a dificuldade do mal que habita em nós enquanto a consciencia se amplia, dia-a-dia, para o bem que precisamos aprender a realizar.

Com isso, obviamente [e tragicamente] corremos sérios riscos de errarmos o ponto da receita, experimentando situações e vivências que nos levam a uma possivel piora social [e familiar] antes de atingirmos um estado de equilíbrio, efetivamente.

Já sabemos que seguimos rumo a uma perfeição relativa, porém o tempo que levaremos para atingir nosso principal objetivo, assim como a intensidade e quantidade de dor e sofrimento que experimentaremos durante este processo, dependerá principalmente do esforço que fizermos na realização daquilo que os grandes mestres já nos ensinaram, ao longo dos séculos. Até lá, e enquanto tais ensinamentos não fazem total sentido em nossas almas, seguiremos pelo mundo, caindo e nos reerguendo, lutando e aprendendo [talvez por mais tempo que o necessário] o que os sábios já compreendem tão bem.

Dentro deste cenário, a família, célula principal da sociedade humana, coexiste com dilemas fundamentais que a envolvem, fruto do atual momento histórico. Vem sofrendo aceleradas mudanças tanto em sua forma como em seu modo de existir e dialogar com o mundo, devido às alterações sociais, pós-globalização. Mudanças estas que são impulsionadas pelo sistema capitalista, que dita regras em prol do consumo e da alienação como parte do processo, rumo à lucratiividade de alguns. A este respeito, Leonardo Boff explica que:

“A família padece pesadamente das influências da cultura dominante, hoje mundializada. Esta se caracteriza por processos sociais que colocam a economia como eixo estruturador de tudo. Esta economia e seu maior instrumento, o mercado, se regem por uma feroz competição deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da solidariedade, fundamentais para a vida humana e para a família.” (BOFF, pg. 02, 2014).

Sendo ela parte de um meio maior, é altamente influenciada por esta cultura, em tempos de pós-modernidade. Atualmente, os laços estão frágeis, os dias estão curtos, a angústia se faz presente em mil situações. E então, e até por conta do próprio sistema, surgem ofertas tentadoras de psicotrópicos, no sentido de minimizar tais angustias sem que se possa refletir sobre elas.

A medicalização da vida - processo no qual um problema não médico começa a ser definido e tratado como uma questão médica, geralmente através de doenças, transtornos e síndromes - surge para enquadrar, moldar as personalidades que estão se desviando das exigências do sistema. É, em ultima instancia, um processo pelo qual a medicina se apropria do modo de viver da sociedade e que aparece neste momento como recurso eficaz, pois de um lado proporciona lucros exorbitantes à indústria farmacêutica e, de outro, dopa o individuo, negando a ele a possibilidade de aprofundar-se nas questões subjetivas e também objetivas .

Dentro deste cenário, temos as famílias - pequenos agrupamentos de pessoas unidas pelos laços sanguíneos ou de simpatia (ou ambos) - tentando se adequar às novas situações e, ao mesmo tempo, buscando sobreviver aos dilemas que aparecem diuturnamente dentro de seu ambiente.

Dora Incontri, educadora, jornalista e escritora, em seu texto Educação, Espiritualidade e Transformação Social, também comenta sobre as dificuldades do nosso tempo:

“A complexidade do mundo contemporâneo mergulha os mais conscientes em perplexidade e empurra os mais alienados às distrações para se esquecerem dos graves problemas que atormentam o ser humano, nesses tempos líquidos, para usar uma expressão cara ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman.” (INCONTRI, p. 01, 2014)

Reconhecemos que, mais que dopar a sociedade, busca-se distraí-la das mais variadas formas, principalmente através da mídia massificante, além de enquadrá-la nos moldes apropriados, usando, para isso, das escolas e de outras tantas instituições. Até mesmo a ciência passa a servir ao deus chamado mercado, trabalhando em prol de suas necessidades e dos sujeitos dito “privilegiados”. Isso pode ser percebido [para citar apenas um exemplo] no empenho gigantesco que existe dentro do meio cientifico para se descobrir a cura da aids ou mesmo do câncer, uma vez que tais doenças podem acometer pessoas de alto poder aquisitivo, enquanto que estudos em prol de vacinas simples, como a que viria para erradicar a tuberculose do mundo, são deixadas de lado, por tratar-se de um mal que atinge muito mais os pobres, em situação de vulnerabilidade social.

Diante disso tudo surgem algumas questões: Qual o formato, o objetivo e o caráter essencial [e ideal] da família, nos dias atuais?

Segundo dados do IBGE (2012), a formação clássica ‘casal com filhos’ já deixou de ser maioria no Brasil. Ela representa 49,9% dos domicílios, enquanto outros tipos de famílias já somam 50,1%. Por outro lado, os recasamentos, com o aumento dos divórcios, fizeram surgir as famílias recompostas. “Os teus, os meus, os nossos” - frase que serviu como titulo de um filme, retratando uma das novas conformações familiares, passou a ser algo bastante comum. Os lares mosaicos, com casais que se separaram e filhos que passam a ter novos parentes, nascidos de novas escolhas dos progenitores, têm crescido de forma considerável, na atualidade.

As Famílias Unipessoais, idem. A busca por privacidade e a maior longevidade fazem com que 12,2% dos lares brasileiros sejam habitados por apenas uma pessoa. Além disso, o IBGE também já detectou 60 mil famílias homoafetivas pelo Brasil. A maioria, 53,8%, é formada por mulheres, mas o órgão governamental admite que tais números provavelmente são maiores, pois nem todos declaram viver neste formato, devido ao preconceito que ainda existe, apesar das constantes discussões a respeito.

Temos também as mães e pais que valem por dois em cerca de 10 milhões de lares pelo Brasil afora. Seja por opção — no caso da adoção - por divórcio e até por instinto, crescem os casos de filhos sob a guarda de só um.

O que nos causa maior espanto é que, segundo o IBGE, crianças e adolescentes já são chefes de família em 130 mil lares brasileiros! Eis um reflexo da problemática enfrentada nos dias atuais em nosso país, com uma riqueza pessimamente distribuída, além de uma educação deficiente e desigual.

Sob posse destes dados, cabe-nos, antes de alguma crítica, uma busca por entendimento, por compreensão dos fenômenos que emergem.

A verdade é que, seja como for sua nova configuração, a família continua sendo um local de proteção, de socialização, de estabelecimento de vínculos.

Independentemente da forma e do tempo de duração, deverá ser o local ideal para a educação de almas – um núcleo voltado ao crescimento, quando verificadas as bases saudáveis de relação entre seus pares.

Entretanto, se a velocidade das mudanças vem aumentando assustadoramente, não é menos verdadeiro que a sensação de desamparo, de despreparo, de desconforto tem aumentado, na mesma proporção.

O ambiente da clinica psicológica tem-nos oferecido dados consistentes a este respeito, pois vemos surgir no setting terapêutico, pais, mães e filhos deslocados de seus papéis, confusos e adoentados, perplexos com os dramas que passam a experimentar, não conseguindo explicar, tampouco compreender, em qual momento tudo deixou de fazer sentido.

Após breve entrevista, seguida de alguns poucos atendimentos, percebemos o despreparo de muitos para darem conta do estado atual das coisas. Pais saem de seus lares em busca de um sustento que já não visa apenas o essencial, mas principalmente o supérfluo, que se tornou, através dos meios acima citados, a meta existencial de seus componentes. Porém, e até mesmo devido a própria natureza humana, tal meta é inconsistente, pois parte de uma premissa falsa: a de que a felicidade está nas coisas que possuímos ou que desejamos possuir.

Dentro desta busca frenética, pais e mães gastam suas horas, dias e anos tentando amealhar recursos e passam a acreditar que os filhos precisam se formar para a tal vitória econômica, colocando-os, quando possível, em escolas que oferecem aquilo que pensam ser primordial para a formação destes, com “conteúdos essenciais”, visando a aprovação no vestibular das melhores universidades.

Estes filhos, por sua vez, quando dentro do obsoleto e alienante sistema educacional, vão sendo arrastados para o que o sistema maior exige, tendo decepadas suas tendências, suas possibilidades íntimas. Assim como fazia Procusto, o verdugo cruel da mitologia grega, com seu leito deformante e criminoso, a escola segue os dias podando as potencialidades e possibilidades dos indivíduos e também enxertando nas crianças e adolescentes aquilo que melhor lhe convém. Sobre isso, buscamos novamente as lúcidas palavras de Dora Incontri:

As crianças adentram o mundo escolar com intenso brilho nos olhos, cheias de perguntas, curiosidades, sensíveis ao ambiente, capazes de observar uma formiga ou admirar-se com uma estrela, capazes de se revoltar com uma injustiça e de se interessar pela dor do outro. E saem da escola, anos depois, esvaziadas, de olhar vago, desinteressadas, entediadas, em sua maioria, detestando o aprender. Sem nenhum preparo para a vida de verdade, sem nenhuma crítica ao mundo em que vão habitar, sem nenhum ideal à vista… Elas devem estar prontas para um mercado de trabalho desumano, em que elas serão peças descartáveis. (INCONTRI, p. 02, 2014).

Cabe-nos ainda dizer que o pai que chega ao consultório por vezes sequer reconhece que papel deve desempenhar no ambiente familiar. O mesmo se dá com as esposas e, consequentemente, com seus filhos. Todos estão sendo levados pela ideologia vigente, aparentemente sem forças para alterar os rumos.

O casal, que deveria estar à frente da educação de seus filhos, auxiliando-os, com seu amor e presença, têm terceirizado sua missão essencial, usando do serviço de babás, professores e cuidadores, muita vez negligentes e despreparados, enquanto que os filhos, que deveriam ser amados e bem direcionados, cientes de sua posição nesta configuração, ampliando os próprios horizontes psíquicos e espirituais através das orientações lúcidas e pontuais dos responsáveis, encontram-se perdidos, por vezes tomando a posição de ‘amigos’ dos pais, e, em outros momentos, transitando para o comando nas situações de cotidiano, sem condições emocionais e mesmo morais para isso.

Afirma Leonardo Boff que os “Estudos transculturais revelaram que a quantidade e a qualidade de tempo em que os membros da família passam juntos vivendo relações de afeto e de pertença são determinantes para os comportamentos individuais e para as opções sociais que serão tomadas.” (BOFF, p. 06, 2014).

Porém, não é o que se vê nos dias atuais. Sendo a mulher importante peça neste sistema, com sua força de trabalho para maior consumo, seu filho passa a ser um impedimento, um problema que deve ser resolvido rapidamente, de preferência logo aos seis meses de vida, devendo ser depositado em creche ou escolinha de período integral, muita vez vivendo experiências de privação, devido o despreparo dos profissionais e mesmo pelo fato destes não darem conta da demanda, que excede suas possibilidades, precisando cuidar de muitas crianças, por longo espaço de tempo, contando apenas com uma ou duas auxiliares.

As mães e pais que conhecem todas as necessidades de um filho, sabem que esta conta não se fecha, se levamos em conta tais números.

Mas, e as novas constituições familiares, afinal? Seriam elas melhores ou piores, sob o ponto de vista social ou mesmo espiritual?

A verdade é que estamos exatamente no olho do furacão. Compreender tudo o que está acontecendo com total clareza, sendo nós os atores desta peça atualíssima, é tarefa hercúlea, ou melhor, impossível.

O que podemos inferir é que as famílias estão se reconfigurando de acordo com a facilidade nos processos do divórcio, devido a um afrouxamento das cordas sociais que antes pressionavam aqueles que gostariam de sair de casa, para formar uma nova família, de acordo com seus desejos, suas aspirações e formas de ver o mundo. Os homossexuais já lutam pelo reconhecimento de seus sentimentos, de sua opção sexual, com certa representatividade, podendo inclusive oficializar as uniões perante a sociedade civil. As mulheres, antes confinadas somente no espaço doméstico, buscam mostrar seu valor em uma sociedade predominantemente machista, saindo de seus lares para as universidades e mercado de trabalho, etc.

Neste caldeirão de situações variadas e complexas, estamos todos nós, personagens pós-modernos em plena praça de experimentações.

Tomando a lente espirita como instrumento de análise, podemos afirmar que as “regras” existentes na Lei Divina, pautada e vivenciada no amor, justiça e caridade, são as mesmas para todos os seres, em todas as situações.

Então, o que vale para os heterossexuais, cabe também para os homossexuais, para os casados, amasiados, solteiros, etc.

O lar não é apenas a casa que protege os seres das intempéries, mas os laços que unem as pessoas que decidem viver neste ambiente, a dinâmica que constroem juntos, com seus dilemas, suas alegrias, lutas e desilusões.

Apesar das enormes dificuldades enfrentadas nos dias atuais, com a erotização dos meios midiáticos, com a expansão do darwinismo social, com os apelos de consumo desenfreado, deve o sujeito buscar refletir sobre o mundo, a vida, tentando entender qual o verdadeiro sentido existencial, para além do proposto pela cultura vigente.

Entender qual a forma de existir do circulo familiar, para formular as devidas e intransferíveis intervenções.

Famílias nucleares, famílias mosaico, famílias estendidas, compostas ou homoafetivas devem manter relações interpessoais de qualidade superior, orientando e apoiando crianças, sob a égide do respeito, do amor, da segurança, do cuidado suficientemente bom, como já teorizava Winicott, promovendo sua autonomia, com pleno desenvolvimento de suas capacidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais.

Os parceiros de jornada, sejam eles de qualquer gênero, idade ou condição social, devem construir uma relação de cumplicidade, de entendimento e perseverança, mantendo o foco no SER e não no TER.

Dentro desta busca, imperioso repensar, discutir e trabalhar pela causa social, sustentada nos pilares da educação.

É ainda Dora Incontri, quem nos alerta que “Se a educação não incorporar em suas práticas um horizonte de transformação do mundo e ao mesmo tempo uma volta a valores imanentes na consciência humana, dificilmente poderemos sair do niilismo paralisante em que estamos estacionados.” (INCONTRI, p. 03, 2014).

Entendemos, então, que a questão é de extrema urgência, pedindo-nos muito mais que reflexões, mas empenho, com ações lúcidas e repetidas,

Através de novos e constantes esforços, buscar uma melhor compreensão sobre os fenômenos que nos atingem e nos constituem enquanto seres reencarnados em um planeta que passa pelo delicado momento de transição. Momento este caracterizado por grandes crises de ordem mundial, como nos explica Allan Kardec, na obra "A Gênese":

"Nesse tempo não se tratará mais de uma mudança parcial, de uma revolução limitada a uma região, a um povo, a uma raça; mas um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral." (KARDEC, p. 355, 1992).

O codificador da Doutrina dos Espíritos, após levantar os dados enviados pelos Benfeitores da Espiritualidade, concluiu que, para que ocorra a transformação planetária preciso será que uma nova ordem de Espíritos surja no cenário ou mesmo que os que aqui estão amadureçam no sentido moral. Neste processo, cabe-nos contribuir positivamente, para que tal transição aconteça com menor sofrimento.

Ademais, tais crises, que nos parecem caóticas e insolúveis, são, em verdade, janelas para novas perspectivas que surgem para todos.

Já sabemos que quando um novo paradigma [melhor, mais justo e espiritualizado] quer surgir no mundo, o antigo luta com forças para se manter em vigência.

Portanto, e a partir do que construímos até aqui, tendo em vista um futuro mais harmonioso, mais feliz, trabalhemos!

REFERÊNCIAS:
BOFF, L.; A família entre utopia e realidade: uma reflexão teológica, artigo disponível no site http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/14/a-familia-entre-utopia-e-realidadeuma-reflexao-teologica/, acessado em 05 de abril de 2014.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico: resultados preliminares - São Paulo. Rio de Janeiro, 2012.

INCONTRI, D; Educação, Espiritualidade e Transformação Social; São Paulo, SP, Comenius, 2014.

KARDEC, A.; A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo; Os Tempos São Chegados, cap. XVIII, FEB, Rio de Janeiro, 1 edição; 1992.

WILBER, K; Éden, Queda ou Ascenção?: uma visão transpessoal da evolução humana, Campinas, SP, Verus, 2010 WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.


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